[ Coração Habitado ]

Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam
que são as mãos de deus,
- eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.

in Até Amanhã
de Eugénio de Andrade


9.11.08

Eugénio de Andrade | Coração Habitado













VELHA MÚSICA
Corriam pelas ruas, era frequente um grito subir no céu, parecia então um milhafre a pairar, depois apagava-se, quase triste. Corriam ao encontro do vento, ficavam com febre de tanto o perseguirem ou dobrarem pela cintura. Apenas com as derradeiras luzes entram em casa, deitam então a cabeça no regaço das mães, fulminados pelo sono. Até a manhã entrar, não se sabe bem por onde, elas não despregam os olhos daquelas pálpebras pesadas. Só então os confiam à luz.